31.1.04

Agora há pouco estava ouvindo Haiti, música de Caetano e Gil do CD Tropicália 2, de 1993. Percebi que onze anos depois a música ainda é bem atual, lamentavelmente, em uma nação que tem deputados e senadores propondo a redução da maioridade penal para doze anos, o Estado não oferece as mínimas condições de vida aos seus cidadãos (quanto mais à sua juventude). Quando simplesmente não os elimina da vida, como fez a polícia carioca ontem. Vejam só o link.

Haiti
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)

Quando você for convidado pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

Para onde eu olho dentro de casa eu fecho mágoas e ressentimentos. Nós somos incapazes de resolvermos as nossas brigas e discordâncias porque elas são carregadas de uma vida de mágoas, pesos, dívidas (ou melhor, sentimentos de dívidas). Quando penso em sentar com cada uma e fazer ver que grande burrice é isso, que grande incapacidade afetiva, eu é que me sinto incapaz por saber que minhas palavras iriam para o vazio ou bateriam e voltariam como em uma parede. Consciências cauterizadas como a de vovó (a esse respeito) palavras não tocam.

30.1.04

Podem esperar: o órgão do governo federal responsável pela classificação etária dos programas de tevê vai se mover contra o SBT. Exibir South Park nesta noite foi brincar com fogo para o canal de Sílvio Santos. Muita gente deve ter sobrado escandalizada.

O MyDoom é a praga desta semana no mundo. De uma pestilência maior do que a gripe asiática ou a gripe do frango, já é o vírus que mais rápido se espalhou pela Internet na história. Eu mesmo já perdi as contas de quantos e-mails contaminados pelo MyDoom foram bloqueados pelos meus provedores de e-mail. Seja cuidadoso. Leia mais aqui.

Uma das minhas tias caminha para completar 63 anos. Ela teve uma vida de farrista, um aborto, um filho solteira, que foi incapaz de educar. Minha avó tomou para si a responsabilidade de criar Alexandre e jamais perdoou a juventude transviada que minha tia teve.
Essa tia tem sérios distúrbios mentais e problemas de saúde física decorrentes, claro, da vida louca que viveu. Há oito anos ela se converteu na minha igreja.
Ela é uma mulher de difícil convivência por todos os seus problemas psicológicos e emocionais. E, por isso e por todas as besteiras que fez na vida, ficou cada vez mais só e isolada. Artista, já teve muitos homens na vida (jovem bonita como era). Hoje, no fim da vida, corpo decrépito, sofre de solidão, de dores físicas, psicológicas e espirituais, fruto da sua vida. Sozinha.
Hoje eu tive pena de minha tia.

Vida nova, em plenos sentidos. Finalmente formatei meu HD. Agora eu apenas do Office e do driver de meu monitor. E, mais importante, entrei na era da Internet banda larga através do Velox e AOL.

28.1.04

Família Guevara elogia novo filme de Walter Salles

Depois de fazer sucesso no Festival de Cinema de Sundance, nos Estados Unidos, o novo filme de Walter Salles, Diários de Motocicleta, foi elogiado pela família do líder revolucionário argentino Ernesto Che Guevara.

Veja mais aqui.

Durante essa viagem, Che conheceu um refugiado marxista dos pogroms de Stálin na Guatemala. Provavelmente esse foi um encontro altamente definidor na carreira do heróico revolucionário. Esse Tirésias lhe deu seu epitáfio com anos de antecedência:

Você vai morrer com o punho fechado e o queixo tenso, numa perfeita demonstração de ódio e combate, porque você não é um símbolo, você é um autêntico membro de uma sociedade que está se desmoronando: o espírito da colmeia fala por sua boca e age em seus atos; você é tão útil quanto eu, mas não conhece a utilidade da ajuda que dá à sociedade que o sacrifica.

27.1.04

Antecipações da próxima matéria de capa do Jornal União:

Na última semana a Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, foi destaque em toda a imprensa, não só no Brasil. Evento criado para pensar os rumos da economia mundial, é o exemplo mais marcante da força impositiva que tem o Neoliberalismo, como doutrina econômica, no contexto atual. Mas o que é o Neoliberalismo e como ele tem influenciado a vida e a teologia das nossas igrejas?
O Neoliberalismo é uma utopia ou teoria que foi elaborado na Chigaco do pós-Guerra por Friedrich Hayek, austríaco, e Milton Friedman. Nas palavras do teólogo belga, radicado no Brasil, José Comblin, o “neoliberalismo pode ser considerado como teoria econômica, como utopia, como ética ou como filosofia do ser humano”. A sua principal tese é a do livre mercado total. O mercado livre não existe entre os seres humanos reais”, diz Comblin. O livre mercado supõe trabalhadores que competem livremente no mercado e oferecem o seu trabalho a quem oferecer melhor retribuição. Acontece que no mercado do trabalho comprador e vendedor não são iguais. O empresário é sempre ou quase sempre mais forte. Habitualmente pode impor suas condições. O trabalhador supostamente tem livre escolha: aceita ou não a proposta de trabalho. Acontece que, no mundo real, ele não tem livre escolha. Tem que comer e, por isso, tem que aceitar o que se lhe oferece, ainda que queira rejeitar a oferta. Não existe livre escolha para o trabalhador, explica o belga de alma brasileira.
Um conceito relacionado ao Neoliberalismo é o da globalização. A ideologia neoliberal ajuda as elites das nações subordinadas a aceitarem os plano políticos dos Estados Unidos. A globalização fornece uma justificação da dominação econômica dos Estados Unidos, diz Comblin.
Ligados a esse conceito temos outros que se relacionam mais de perto com o nosso dia a dia. O primeiro é a supressão dos obstáculos nacionais à circulação de capitais especulativos, bens e serviços, concretizado no Brasil desde o governo Collor. Um outro diz respeito à destruição dos coletivos, em especial do Estado, a fim de deixar o individuo isolado e entregue às leis de mercado. Assim se explica a fala do ex-presidente americano Ronald Reagan: Não temos problemas no Estado, o Estado é o problema. O Estado mínimo é a desculpa para os programas de privatização e a redução de sua atuação na área social, especialmente. Até a família fica desestruturada. Desintegra-se numa coleção de consumidores: há o consumo dos homens, o consumo das mulheres, o consumo dos jovens e o consumo das crianças. A família transforma-se numa justaposição de indivíduos que já não sabem comunicar, explica Comblin.
O mundo inteiro começou a entender agora que um sistema assim é incapaz de promover qualquer liberdade verdadeira. Ao contrário, o Neoliberalismo gera cada vez mais pobres e miseráveis que por sua vez se vêem sós e desprotegidos, especialmente por parte do Estado.
A globalização, na verdade, encobri a conquista cada vez maior do mundo pelos Estados Unidos. Essa conquista se manifesta, inclusive, no campo eclesiástico e teológico. É por isso que a cada dia aportam em nossas terras teologias provindas da América do Norte e comprometidas com o projeto neoliberal.

A teologia do Neoliberalismo

O Neoliberalismo relaciona-se intimamente com o Neoconservadorismo norte-americano. O tema deste novo conservadorismo surgido nos anos 70 é a crise espiritual e moral da sociedade americana. Defendem, associada à redução do Estado, a volta a valores religiosos fundamentalistas. O exemplo atual dessa ideologia é o presidente George W. Bushe os chamados Falcões de Washington, que justificam sua política de redução de impostos para os ricos, de ações militares preventivas e guerra contra o terror com o uso irrestrito do nome de Deus.
Para os teólogos do Neoliberalismo, como M. Novak, P. Berger e R. Neuhaus, somente com a adoção destes princípios os pobres poderiam ser retirados de sua pobreza. O cristianismo afirma a liberdade na interdependência e a tolerância, que são vistos por esses teólogos como frutos cristãos do Neoliberalismo. No entanto, o capitalismo neoliberal gerou desigualdades como nenhum outro sistema econômico e político anterior. A teologia que se relaciona a ele parece-lhe fechar os olhos.
A missão da Igreja nesse modelo se resume a tratar o vazio espiritual e moral do mundo atual e legitimar o capitalismo. Esse é o caso da teologia da prosperidade. Nela, as igrejas não apenas são instrumentos como também se tornam cada vez mais empresas neoliberais.

26.1.04

Quem é você?, pergunta a lagarta à Alice, enquanto a fumaça que sai de sua boca (ela está fumando) forma as letras no ar. Essa é a cena do desenho da Disney que eu assisti de novo à tarde no SBT. Quem é você? também é uma das perguntas que Sofia recebe no início de sua história, O mundo de Sofia. Afinal, então, Quem é você?
Pergunta que muitos de nós não temos idéia de como responder, antiga como a filosofia. Ontem perguntei a uma amiga como ela estava. Sua resposta, a princípio, traduzia a sua incerteza em se saber quem é. Falou de atividades que fazia ou deixava de fazer, de trabalho ou da falta dele, do vestibular e seu resultado. Sim, mas e você? Você se resume a essas coisas?
Será que as nossas atividades, nosso trabalho, nossos projetos estão substituindo a nossa essência, o nosso ser? Será que na cultura contemporânea ainda é possível se achar espaço para simplesmente ser? Quem você é? Espero que a sua resposta não se limite às coisas que você faz, mas que você já possa perceber e responder sobre você mesmo.

Lewis Carroll caprichou nas críticas com Alice. Na melhor tradição do uso de histórias pretensamente infantis para fazer crítica política, abusou da menina curiosa que se perde na toca do coelho para escrachar a Inglaterra vitoriana. Grande momento acontece quando Alice toma a palavra, crescida, e discursa contra a Rainha, contra a estupidez de suas decisões, contra o contrasenso de seu governo. Crítica mordaz.