8.11.03

É isso mesmo que eu quero:
Um amor maior que eu mesmo!

7.11.03

Poderia vir nesse post como em tantos nas últimas semanas dizer que tive perdas. Mas é emocionantemente verdade que não perdi nada! E ganhei mais do que em qualquer outra época da minha vida.
Minha única perda, um romance, não a chamaria real. Como poderia perder alguém que nunca tive? Como poderia acabar um romance que nunca houve? E como foi grato, plenificante e libertador descobrir isso.
Não, eu não sou a raposa de La Fontaine. Minha percepção disso tudo ocorreu paralelamente ao meu processo de perda. E concretizou-se já longe dela. Não perdi nada. E ganhei tanto.
Ganhei de novo amigas como Queila, Emília, a quem sempre pertenci. Mesmo sem saber. Ganhei de novo meu pastor e Amariles, a quem pertenço com consciência. Ganhei novas pessoas, também.
E ganhei, acima de tudo, minha família. Juliana, Fabinho, Serginho, Lucinha. Pertenço agora a eles.
Ganhei crescimento. Ganhei liberdade. Ganhei uma felicidade que nunca antes havia sentido. Ganhei de volta sonho e vocação. Ganhei senso de pertencimento.
Ganhei tanto de Deus. O que darei em troca?
Ganhei tanto que me faltam palavras. Engasgo-me com elas.
Ganhei tanto ... como poderia reclamar a perda de uma utopia? Como poderia, diante da concretude de tanta coisa nova?

Eu amo a minha cultura. Amo meu país e minha cultura popular. A entrevista do Carroça de Mamulengo no Programa do Jô me levou às lágrimas. Que maravilha Deus fez ao fazer o nosso país, nosso povo, nossa cultura.
E que maravilha a Igreja tem perdido ao construir barreiras de separação entre a sua reta doutrina, teologia sã, e a cultura e a língua do povo. Cultura que está impregnada em nosso inconsciente. Cultura que é a riqueza que Deus deu a nós.
É tempo de nos reconciliarmos com nossa cultura. Reconciliar Igreja e povo.

100 anos de Ary Barroso

Isso aqui o que é

isso aqui, ô, ô é um pouquinho de brasil iaiá
desse brasil que canta e é feliz, feliz, feliz, é
também um pouco de uma raça
que não tem medo de fumaça ai, ai
e não se entrega não

olha o jeito
nas cadeiras que ela sabe dar
olha só o remelecho que ela sabe dar

morena boa que me faz penar bota a sandália
de prata e vem pro samba sambar

6.11.03

Por muito tempo admirei algumas pessoas. Quer dizer, eu achava que as admirava quando na verdade admirava apenas suas idéias, suas convicções, as coisas que faziam. Eu não era capaz de admirá-las verdadeiramente. Ou porque elas não eram admiráveis ou porque eu era incapaz de admirar alguém de verdade.
Aquelas perguntas que fiz outro dia são decisivas aqui: A quem eu amo? A quem eu sigo?. Minha admiração por essas pessoas as tornavam exemplos para a minha vida. Mas exemplos de quê? De lutas? De idéias? São essas coisas que são importantes na vida? Ou seria o amor?
Descobri que algumas pessoas a quem admirava por suas idéias eram incapazes de me ensinar algo sobre o amor. E então eu não aprendia nada de valor para construir uma vida saudável. E assim meus relacionamentos, com elas ou com outras pessoas, repetiam os mesmos erros de sempre. Eu nunca crescia. Nunca amadurecia. Nunca me tornava gente.
Mas eu quero exemplos de amor para minha vida. Exemplos de relacionamento. Nisso tem começado a se encaixar minha sobrinha Juliana.
Foi muito bom conversar com ela hoje. Ela nem sabe que me fez ver o quanto a minha teologia se desviou das minhas palavras nos últimos tempos. Se eu prego uma Teologia revolucionária ela precisa se firmar em relacionamentos reais, acima de tudo com Deus. Richard Shaull já afirmava que comunidades de amor, que ele chamava de Koinonias, iriam ser promotoras da Revolução do Reino de Deus. E Koinonia é comunhão, relação, amor. É vida.
Se eu prego uma Teologia revolucionária, preciso construir relações com o amor transformador. Minha sobrinha nem sabe o quanto me fez ver isso hoje.

Ocupadíssimo com a realização do Jornal União, sem tempo para bloggar hoje, quero saudar as relações que estou criando, retomando, estabelecendo.
É um prazer retomar a amizade com velhos amigos, conquistar novos vínculos. É um prazer descobrir o caminho da plena vida humana, tocando e construindo relacionamentos. É um prazer até passar vergonha nesse processo.
Obrigado, então, meus amigos. Obrigado, minha família. Sei que como humanos, nas falhas e desacertos, vamos errar muito. Vão errar conosco. Vamos nos machucar, mas esse é o caminho para nos libertarmos, sermos mais vivos, mais gente. Sermos mais felizes.

Esse post, meio confuso pela pressão do tempo, é um recado para a minha sobrinha Juliana. Espero que nossa amizade possa ser construída como bênção para as nossas vidas e da nossa família.

5.11.03

O Tempo
(Oficina G3)

O vento toca o meu rosto
Me lembrando que o tempo vai com ele
Levando em suas asas os meus dias desta vida passageira
Minha certezas, meus concertos, minhas virtudes, meus defeitos
Nada pode detê-los...

O tempo se vai, mas algo sempre guardarei
O teu amor que um dia eu encontrei

Os meus sonhos o vento não pode levar,
a esperança encontrei no teu olhar
Os meus sonhos a areia não vai enterrar,
porque a vida recebi ao te encontrar

Nos teus braços não importa o tempo
Só existe o momento de sonhar
E o medo que está sempre a porta,
Quando estou com você, ele não pode entrar

Preciso dizer uma coisa. Independente das espécies de sentimento que hoje se manifestam em meu coração, não me sinto apto para um relacionamento do tipo romance.
Não diria, em absoluto, que não aconteceria, sob o risco de queimar minha língua. Mas não considero honesto comigo e com a outra pessoa, quem quer que seja, me envolver assim agora. Quero relacionamentos que me transformem e me façam crescer. Relacionamentos assim em casa, na igreja, na universidade, no trabalho, com amigos. Relacionamentos que impliquem certo nível de entrega, cumplicidade e compromisso. Mas não ainda um romance.
Meus olhos, ouvidos e coração dirigem-se hoje unicamente para dentro de mim. Busco me entender. Busco me ouvir. Busco, acima de tudo, um relacionamento concreto, real e honesto comigo mesmo. Busco a auto-entrega e auto-compreensão que estão nascendo em mim.
Com a atenção focada em mim seria incapaz de uma entrega romântica real a outra pessoa. Seria ilusão. Estaria repetindo o mesmo tipo de história que descobri, querer acabar. Estaria repetindo o mesmo erro de viver um relacionamento virtual, ilusório, transcendental, superficial.
Acredito que uma entrega real no meu momento somente poderia acontecer se isso fizesse parte de um momento evolutivo, parte de um romance, em que descobertas e aprendizados conduzissem ambos a esse parto, esse novo nascimento.
Fora disso, esse é meu tempo. Procurarei respeitá-lo para viver intensamente o meu amor. Na hora exata.

Trinta e seis dias é canalhice. Mas não vou mais falar nisso.

4.11.03

Ainda sobre a minha avó. Mas é claro que minha avó carrega muitas feridas. E eu disse a ela que suas feridas foram provocadas porque, ao longo de seus 81 anos de vida, ela foi incapaz de resolver seus problemas.
Minha avó é altamente explosiva. Ao se irritar, ela expõe logo tudo o que pensa. No entanto, ela nunca conseguiu voltar atrás para tratar suas dificuldades, seus problemas. Ela carrega suas feridas sem permitir que cicatrizem. Que sejam curadas. Ela se revela incapaz de buscar alguém e travar uma conversa cujo tema seja perdão e reconciliação.
Por isso, a depressão. Por isso, a morte como ambiência de vida. Por isso, uma vida que, na melhor das hipóteses, se resume à sua relação com a filha, que ultimamente não tem lhe dado atenção.
Disse à minha avó que não quero repetir a sua história. Quero ser capaz de voltar e de resolver meus problemas relacionais. Quero focar o que de valor tenha em minha vida nos meus relacionamentos, nas pessoas à minha volta. Quero que elas sejam importantes e, assim, quando com elas tiver problemas, possa, ainda que doa, resolvê-los. Quero viver de maneira plenamente humana a plenitude de vida que o amor e as pessoas trazem. Quero, de verdade, viver.
Porque eu não quero carregar chagas do passado (posso permitir que elas cicatrizem) e porque não quero reproduzir as mesmas feridas no futuro busco resoluções e busco curas que para minha avó são incompreensíveis. Ela, que se acostumou a engolir suas mágoas, não compreende porque eu não as suporto em mim e busco o diálogo com pessoas as mais diversas para resolvê-las, curá-las, tratá-las, cicatrizá-las.
Não quero repetir minha avó. Quero chegar à velhice pleno de vida, pleno de paz, pleno de amor. Sem o peso das feridas do passado, mas com cicatrizes que me mostrem a experiência que acumulei ao errar.
Quero viver o meu amor.

Diretamente daqui, carta que Betinho escreveu para sua esposa antes que a AIDS o levasse:

Uma carta para Maria - Itatiaia, janeiro de 1997

Este texto é para Maria ler depois da minha morte que, segundo meus cálculos, não deve demorar muito. É uma declaração de amor.

Não tenho pressa em morrer, assim como não tenho pressa em terminar esta carta. Vou voltar a ela quantas vezes puder e trabalhar com carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para Maria tem que ter todos os cuidados. Não quero triste, quero fazer dela também um pedaço de vida pela via de lembrança que é a nossa eternidade. Nos conhecemos nas reuniões de AP (Ação Popular), em 1970, em pleno Maoísmo. Havia uma clima de sectarismo e medo nada propício para o amor.

Antes de me aventurar andei fazendo umas sondagens e os sinais eram animadores, apesar de misteriosos. Mas tínhamos que começar o namoro de alguma forma. Foi no ônibus da Vila das Belezas, em São Paulo.
Saímos em direção ao fim da linha como quem busca um começo. E aí veio o primeiro beijo, sem jeito, espremido, mas gostoso, um beijo público. A barreira da distância estava rompida para dar começo a uma relação que já completou 26 anos!

O Maoísmo estava na China, nosso amor no São João. Era muito mais forte que qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada na clandestinidade sem sentido e sem futuro. Fomos viver em um quarto e cozinha, minúsculos, nos fundos de uma casa pobre, perto da Igreja da Penha. No lugar cabia nossa cama, uma mesinha, coisas de cozinha e nada mais. Mas como fizemos amor naquele tempo! Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto prazer.

Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança. Medo de dia, amor de noite. Assim vivemos por quase um ano. Até que tudo começou a "cair". Prisões, torturas, polícia por toda a parte, o inferno na nossa frente. Fomos para o Chile. E ali, chamado por Garcez para elaborar textos, acabei no agrado de Allende, que os usou em seus discursos oficiais. Foi a primeira vez que eu vi amor virar discurso político... Depois passamos por muita coisa até voltar. Até que a anistia chegou e nos surpreendeu. E agora, o que fazer com o Brasil?
Foi um turbilhão de emoções: o sonho virou realidade! Era verdade, o Brasil era nosso de novo. A primeira coisa foi comer tudo que não havíamos comido no exílio: angu com galinha ao molho pardo, quiabo com carne moída, chuchu com maxixe, abóbora, cozido, feijoada. Um festival de saudades culinárias, um reencontro com o Brasil pela boca.

Uma das maiores emoções da minha vida foi ver o Henrique surgindo de dentro de você. Emoção sem fim e sem limite que me fez reencontrar a infância.

Depois do exílio, nossas vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos; viajávamos nas férias, visitávamos os amigos, o Ibase funcionava, até a hemofilia parecia que havia dado uma trégua. Henrique crescia, Daniel aos poucos se reaproximava de mim, já como filho e amigo.

Mas como uma tragédia que vem às cegas e entra pelas nossas vidas, estávamos diante do que nunca esperei. A Aids. Em 1985, surge a notícia da epidemia que atingia homossexuais, drogados e hemofílicos. O pânico foi geral. Eu, é claro, havia entrado nessa. Não bastava ter nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico.

Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século, mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais do que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo, mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado. A Aids selou um amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo, a tentação do desespero, o desânimo diante do futuro. Continuar tudo apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.

Assumi publicamente minha condição de soropositivo e você me acompanhou. Nunca pôs um "senão" ou um comentário sobre cuidados necessários. Deu a mão e seguiu junto como se fosse metade de mim, inseparável. E foi. Desde os tempos do cólera, da não esperança, da morte do Henfil e Chico, passando pelas crises que beiravam a morte até o coquetel que reabria as esperanças. Tempo curto para descrever, mas uma eternidade para se viver.

Um dos maiores problemas da Aids é o sexo. Ter relações com todos os cuidados ou não terá Todos os cuidados são suficientes ou não se deve correr riscos com a pessoa amada? Passamos por todas as fases, desde o sexo com uma ou duas camisinhas até sexo nenhum, só carinho. Preferi a segurança total ao mínimo risco.

Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e mulher, vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura, da invenção, dos pequenos prazeres e da paz. Viver é muito mais que fazer sexo. Mas para se viver isso, é necessário que Maria também sinta assim e seja capaz dessa metamorfose como foi.

Para se falar de uma pessoa com total liberdade é necessário que uma esteja morta e eu sei que este será o meu caso. Irei ao meu enterro sem grandes penas e principalmente sem trabalho, carregado. Não tenho curiosidade para saber quando, mas sei que não demora muito.

Quero morrer em paz, na cama, sem dor, com Maria do meu lado e sem muitos amigos, porque a morte não é ocasião para se chorar, mas para celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das pessoas que morrem sozinhas ou mal acompanhadas, é morrer muitas vezes em uma só. Morrer sem o outro é partir sozinho. O olhar do outro é que te faz viver e descansar em paz. O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou uma cerveja gelada.

Te amo para sempre,

Betinho


3.11.03

O dia de ontem era reservado em nosso calendário para chorarmos os nossos mortos.
Vi minha avó chorando seus mortos.
Chorava mortos concretos. Os queridos que partiram. Seu irmão, único, falecido em março. Sua neta, morta há 17 anos. Morte insuportável ainda. Chorou suas amigas que se foram há tempos.
Minha avó chorava também uma morta bem próxima. Eliana, minha tia, filha mais próxima, passou o ano em Nova York. Dor insuportável. Mas não se compara com a dor mortal que minha tia está lhe causando. Ela ainda não vive em Natal. Ela não conseguiu ainda voltar de verdade das terras americanas. Minha tia está morta para essa terra. E, sem perceber, mata minha avó pouco a pouco. Minha tia se torna incapaz de se relacionar conosco. Incapaz de se relacionar verdadeiramente com a própria mãe. E perdeu a sensibilidade de percebê-la sofrendo a seu lado. Minha avó chorava a filha, morta (ainda que viva), ao seu lado.
Mas minha avó chorava também a própria morte. Não antecipando o inevitável, mas de modo real, minha avó chorava o fim de seus sonhos e sua vida. Ela (pelo menos na sua visão) morreu com os seus sonhos ainda aos catorze anos. Ao casar. Aquele casamento e essa vida que vem dali representou a morte da vida que ela sonhou para si mesma. Representou uma vida sem sentido, sem amor, sem relacionamentos concretos, sem sonhos, sem vida.
Aos 81 anos, toda a vida de minha avó hoje se restringe ao relacionamento com minha tia, Eliana. É seu sentido de vida. Mas Eliana anda muito egoísta para perceber que está matando o resto de vida da própria mãe.

2.11.03

Fim de semana, acho que nossa criatividade murcha um pouco. Talvez seja o ritmo de igreja, sermão, louvor, oração, futebol na Globo. Falta reflexão diante do entorpecente Faustão (preciso assistir para criticar, não é essa a desculpa de cada um de nós?).

Aprendi com Daniel Pennac a não culpar a televisão pela falta de leitura de cada um de nós. Eu a culpo por outras coisas, como a nossa falta de criticidade (não foram os Titãs quem disseram que a televisão me deixou burro, muito burro demais?).

Mas por falar em leitura e para encerrar esse domingo sem muita criatividade (e com muita saudade de uma companhia feminina, mulher real dos meus sonhos, companheira fiel e concreta), mais um pouco de Daniel Pennac, Como um romance, texto presenteado por Adriano no nosso mestrado:

O homem constrói casas porque está vivo, mas escreve livros porque se sabe mortal. Ele vive em grupo porque é gregário, mas lê porque se sabe só.

E, assim, Pennac (e eu) fecha sua linda obra.