25.7.04

O texto completo de minha resposta está aí.  Se alguém tiver paciência de ler:

Sobre Che e o Deus da Bíblia

            Em 8 de outubro de 1967 o exército boliviano capturou Ernesto Che Guevara. No dia seguinte, ele foi executado de maneira a parecer ter sido morto em combate. A notícia de sua morte foi um baque em todos os latino-americanos que acreditavam em um mundo mais justo e que esse mundo viria através da Revolução.
O tenente-coronel boliviano Andrés Selich interrogou o prisioneiro antes de ser executado:
“Comandante, acho que está um pouco deprimido, disse Selich. Pode me explicar os motivos dessa minha impressão?”
“Eu fracassei”, respondeu Che. “Está tudo acabado, e esse é o motivo de você me ver nesse estado.”
“Você é cubano ou argentino?”, perguntou Selich.
“Sou cubano, argentino, boliviano, peruano, equatoriano, etc. Você entendeu.”
“O que o fez decidir atuar em nosso país?”
“Não vê o estado em que vivem os camponeses?”, perguntou Che. “São quase selvagens, vivendo num estado de pobreza que corta o coração, tendo um único quarto para dormir e cozinhar e nenhuma roupa para vestir, abandonados como animais...”
“Mas a mesma coisa acontece em Cuba”, replicou Selich.
“Não, isso não é verdade”, reagiu Che. “Não nego que haja pobreza em Cuba, mas [pelo menos] os camponeses de lá têm uma ilusão de progresso, enquanto o boliviano vive sem esperança. Assim como nasce, ele morre, sem jamais ver melhorias em sua condição humana.”
(MANGUEL, Alberto. No bosque do espelho: Ensaios sobre as palavras e o mundo. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 78-79).
            No fim dos anos 50 e nos anos 60, o tema que dominava o pensamento social era a Revolução.  O maior problema dos cristãos nesses dias foi ter se filiado aos poderosos, de tal maneira que justiçavam e mesmo mantinham toda opressão e espoliação dos mais pobres e miseráveis.  Aliás, a melhor denominação para pobres e miseráveis é explorados, porque eles não estão nessa situação nem por opção própria, nem por escolha de Deus.
            “Diários de Motocicleta” mostra como a constatação in loco dessas coisas por Ernesto Guevara de la Serna fez nascer dentro dele a indignação e o espírito revolucionário.  E então ele fez uma clara opção pelos pobres da América Latina.  E foi à luta da melhor maneira que pôde perceber a fim de transformar as coisas.  E fez Revolução. 
            Diferente de Fidel, que se tornou ditador (da mesma estirpe de Fulgêncio Batista), Che se fez revolucionário e partiu para cada confim onde havia injustiça para lutar por justiça.  A igreja de então, como tantas vezes a igreja de agora, preferiu a comodidade dos palácios, comemorando o Golpe de 64 (no Brasil), assumindo os interesses norte-americanos em vez dos interesses de sua própria gente, entregando seus filhos à tortura e à morte nos anos seguintes. 
            A submissão às autoridades não pode ser confundida com conivência ou acomodação.  Grandes homens de Deus transformaram as coisas se opondo com firmeza a uma ordem social injusta: Lutero, Calvino, Knox, Martin Luther King Jr., Bonhoeffer, Desmond Tutu, Nelson Mandela.  Afinal, o “Magnificat” (Lucas  1. 46-55) mostra-nos um Deus que faz a Revolução e opta pelos explorados: “Derribou  do seu trono os poderosos e exaltou os humildes.  Encheu de bens os famintos e despediu de mãos vazias os ricos” (Lc. 1. 52-53).
            É bom lembrar também que cristãos, evangélicos ou católicos, fizeram a Revolução, sem crises de consciência, em Cuba, em Nicarágua, em outros lugares, lutando pela Verdade e pela Justiça.  Além disso, Che pode nos ser exemplo, aos cristãos, em sua disposição ao martírio (a capacidade de entregar a vida pela causa da justiça), em sua não conformidade com a injustiça, em sua denúncia de todo mal, em seu compromisso com os pobres: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus.  Bem-aventurados vós, os que agora tendes fome, porque sereis fartos.  Bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir. (...) Ai de vós, os ricos! Porque tendes a vossa consolação.  Ai de vós, os que estais agora fartos!  Porque vireis a ter fome.  Ai de vós, os que agora rides!  Porque havereis de lamentar e chorar!” (Lc. 6. 20-25) e “Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os que têm riquezas!  Porque é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de Deus” (Lc. 18. 24-25). 
            Os crentes geralmente defendem posições sem se aperceberem dos seus entornos.  Não notam que questões e que condicionamentos os cercam.  Não percebem que tantas vezes pensam estar afirmando verdades bíblicas, sem se darem conta que apenas reproduzem discursos ideológicos de manutenção do poder por seus donos.  Não percebem o absurdo que é, em nome da defesa da submissão, defender a injustiça, a opressão, a morte e o mal, que se fortalecem quando assumimos a fala daqueles que exercem seus podres poderes, enquanto a nossa gente morre de fome, de raiva ou de sede.  Defendem interesses que desconhecem, crendo na sua relevância bíblico-teólogica, assumindo compromissos contrários ao seu próprio povo, defendendo, direta ou indiretamente, a morte, a tortura, a dor, defendendo aqueles que humilham, exploram, matam, invadem, torturam e ensinam a torturar.  Foi assim nos anos 60 no nosso meio, é assim ainda hoje, porque o nosso senso crítico não se desenvolveu ao ponto de podermos notar que tipos de discurso obliteram ainda uma leitura coerente e relevante da Bíblia.  E, assim, em vez de lutar por justiça e pela verdade, em vez de lutar contra o pecado e contra as estruturas de morte, preferimos assumir a submissão (que dizem necessária) aos discursos de destruição, de opressão e de morte.  João Alexandre já denunciava que enquanto o domingo ainda for o nosso dia sagrado, enquanto cantarmos e dançarmos com os olhos fechados, sem percebermos tanta gente que morre de fome e de sede ao nosso lado, não tem jeito. 
            Por isso, entre os televangelistas e as teologias podres em defesa dos poderosos que estão aí, entre essas coisas e um revolucionário como Che, eu fico com Che.  Hasta la muerte!