12.10.05

Lágrimas, dor e desrespeito
Daniel Dantas
JORNALISTA, MISSIONÁRIO EVANGÉLICO E MEMBRO DO COMITÊ POTIGUAR PELO DESARMAMENTO

Nos últimos dias, durante a Campanha pelo SIM no Referendo de 23 de outubro, tenho sido tocado pelos testemunhos e lágrimas de diversas vítimas e parentes de vítimas de armas de fogo, que transformaram sua dor em luta. Esta semana, em uma audiência na Assembléia Legislativa do RN, o depoimento, em lágrimas, das deputadas Sandra e Larissa Rosado, mãe e filha, emocionou a todos. No mesmo evento, a fala embargada de um advogado, Daniel Pessoa, que perdeu pai e irmão para as armas, me levou às lágrimas. Muitas lágrimas foram vertidas pelos que sofreram com a tragédia de armas.
Ao mesmo tempo, tem me deixado indignado o desrespeito que tem sido demonstrado com a dor desses pais, filhos, irmãos que têm feito de suas lágrimas combustível para conduzir a sua luta. Essa luta que, durante anos esbarrou em Brasília, terminou por ser parcialmente vencedora em dezembro de 2003. Emocionados, muitos desses guerreiros comemoraram a aprovação de uma das leis de controle de armas mais modernas do planeta, o Estatuto do Desarmamento.
Disse que foi uma vitória parcial porque eram cientes de que aquela aprovação e promulgação resolvia parte dos problemas. Era uma parte da vitória. Até porque a proibição do comércio de armas e munições foi empurrada, forçosamente, para uma consulta popular em outubro deste ano. A luta desses homens e mulheres, cujo combustível são as lágrimas e a dor, prosseguiu.
Eles, que têm buscado ombros e mãos que lhes enxuguem as lágrimas da dor sofrida que carregam no peito, mereciam mais respeito nesta campanha. Temos percebido que não vão encontrar conforto junto àqueles que os desrespeitam todos os dias na tevê. Muito menos vão conseguir alívio para a dor junto a nós, companheiros de luta. Podemos lhes dar o ombro e chorar com eles, como tenho feito, mas não seremos capazes de lhes dar alívio.
A luta desses brasileiros e brasileiras tem sido desrespeitada por diversos e-mails esquizofrênicos que circulam pelas redes da Internet e que dão conta de que, por exemplo, a vitória do SIM seria como colocar uma faixa dizendo aos bandidos que eles são bem vindo para entrar. É um desrespeito quando transformam o resultado da luta de pessoas sofredoras em uma questão ideológica de direita ou esquerda, quando combatem essa luta com texto apócrifos e mentirosos que relacionam o desarmamento aos totalitarismos. Não foram totalitários que criaram a lei e conduzem a luta. Não foi gente financiada por quem quer que seja que foi do luto à luta para transformar o país, impedindo o comércio de armas.
Tenho desafiado muitos que falam bobagens desse tipo a terem coragem de as dizerem olhando nos olhos marejados de mães e país de famílias marcadas, de gente vítima da virulência de uma arma de fogo, que celebra a vitória do desarmamento como vitória pessoal. É muito cômodo falar os absurdos que estão sendo ditos sem os precisar dizer diante de quem sofre e morre por dentro todos os dias em que o desrespeito à sua dor grassa na tevê, no rádio, nos palanques e nos e-mails. A vida de muita gente, a mente muita gente, as palavras de muita gente, seriam outras se ouvissem o que os Daniéis, as Sandras e as Larissas têm a dizer e a chorar. Eles querem o SIM porque querem um país diferente. Mas, se o não e os seus desrespeitos vencerem: o que será diferente, além da sensação de tantos lutadores de que sua luta foi em vão, vencida por mentiras tão terríveis quanto as balas que mudaram as suas vidas?

O absurdo do referendo

Aos poucos, a propaganda eleitoral sobre o Referendo foi me fazendo sentir-me um idiota. Não apenas eu seria idiota, mas um monte de gente boa.

Se a causa pela qual estamos trabalhando é uma malandragem de um governo, é uma utopia ou qualquer outra coisa incapaz de apresentar resultados, serei certamente um idiota. Mas não estaria só nesse barco. Haveria outros idiotas comigo: Chico Buarque, certamente, encabeçaria a lista desses otários, enganados por interesses quaisquer; a CNBB; a maioria das igrejas evangélicas; os movimentos sociais; ONG´s com lutas e resultados no trabalho de redução da violência, como o Instituto Sou da Paz e o Viva Rio; gente de movimentos evangélicos sérios, como a Diaconia e a Visão Mundial; parlamentares como a Deputada Sandra Rosado, lutadora pela causa porque teve um filho vítima de arma de fogo; Deputados [no RN] Fátima Bezerra, Fernando Mineiro, Larissa Rosado e Paulo Davim; o prefeito de São Paulo, José Serra; a governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho; gente como Daniel Alves Pessoa, com pai e irmão assassinados com armas de fogo.

Haveria, também, especialistas em segurança pública nessa lista de imbecis, como Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-secretario nacional de segurança pública; Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (UFRJ); Paulo Sérgio Pinheiro, expert independente da ONU para o estudo da violência contra a criança; Regina Novaes, antropóloga; Túlio Kahn, coordenador de pesquisa da Secretaria de Segurança Pública/SP; Jorge Werthein, ex- representante da Unesco no Brasil; Marcelo Freixo, pesquisador da Justiça Global; Lourdes Bandeira, Diretora do Instituto de Ciências Sociais da UnB; José Vicente Tavares dos Santos, presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia; Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (UCAM); Leila Linhares Barsted, diretora da Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA); Ignacio Cano, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (UERJ); César Barreira, Coordenador do Laboratório de Estudos da Violência na Universidade Federal do Ceará. A propaganda eleitoral e a opinião de muitos com quem tenho conversado tem me posto em dúvida a respeito de minha própria capacidade intelectual. Todos nós devemos ser idiotas por estar defendendo uma idéia que seria a pior saída para o Brasil. Porque a saída para o problema de segurança no país é cada um se armar. É a política do cada um por si e Deus por ninguém. Por favor, o último que sair apague a luz.

Os que estão com a perfeita faculdade mental são o grupo que se auto-denomina bancada da bala. Realmente, entre Jair Bolsonaro, ícone da direita reacionária que manteve a Ditadura Militar por duas décadas no país, e Chico Buarque de Hollanda, símbolo da luta pela redemocratização, a causa de Bolsonaro deve estar correta. Somos todos loucos e queremos aumentar o medo e a insegurança em nossas ruas.

Mas é só parar para pensar e ter certeza de que nenhum desses citados é maluco ou irresponsável. Nenhum desses proporia uma saída que não tivesse fundamento e que não fosse viável. Todos esses conhecem o assunto, sabem o que estão falando, tem combatido a violência e a mortandade em nossas cidades. Notoriamente, não são idiotas. Então, devem estar certos.

Isso deve nos trazer de volta ao nosso perfeito juízo. Uma causa que reúne tanta gente respeitável e especialistas de renome não pode ser uma idiotice. Não pode ser jogada, não pode ser uma farsa de fumaça. Gente como essas pessoas têm algo a dizer e não abririam a boca para pregar sandices. A pergunta é: então, por que essa gente vota SIM? Se eles votam SIM, e eles, sabemos, não são idiotas [como eu não sou], deve haver alguma razão.

Temos dito que ninguém é irresponsável de defender que o desarmamento vai promover uma mudança, por si só, no quadro de insegurança pública. Mas, certamente, vai reduzir, como já tem reduzido, a mortandade por armas de fogo no país. Só no ano passado, a redução dos mortos, que a Unesco tributa unicamente ao desarmamento, foi de 15,4%. Foram mais de 5 mil vidas poupadas. Isso porque a maior parte das mortes por armas de fogo no Brasil não é provocada pela criminalidade, mas sim por conflitos que os especialistas chamam de "interpessoais".
Além disso, se prova, por estatísticas das mais diversas fontes, que quem tem uma reação armada a uma tentativa de violência armada tem infinitamente mais chances de morrer ou ser ferido com gravidade. Segundo o FBI, são em torno de 180 vezes mais chances de
morrer, caso você reaja, de forma armada, a uma violência. Porque
habilidade nenhuma reverterá a vantagem do efeito surpresa do bandido. Nessa situação, o sucesso é a exceção. A regra é a morte.

A causa do desarmamento não nasceu neste ou em qualquer outro governo. Foi o resultado da mobilização popular e da ação da sociedade civil organizada em ONGs, como o Viva Rio e o Sou da Paz, nos anos 90. Em 1999, o Governo FHC tentou, sem sucesso, aprovar o Estatuto do Desarmamento. O lobby das armas foi mais forte. A vitória popular só foi conseguida em 2003. No texto do Estatuto, no artigo 35, se proibia o comércio de armas de fogo e munição. Foi a bancada da bala que forçou a inclusão da consulta popular em outubro deste ano como condição para que uma das leis mais modernas do mundo sobre armas fosse aprovada. Com essa postura, são eles que se provam loucos, uma vez que agora vêm à tevê criticar os gastos com o referendo e elogiar a lei que não queriam aprovar.

Não somos idiotas. Eu não sou. Porém, também não sou irresponsável, como membro de um comitê pelo desarmamento, de afirmar, volto a dizer, que essa medida é a solução dos problemas de segurança no Brasil. Mas é um passo. Nada vai acontecer se por acaso decidirmos proibir a venda de armas e depois ficarmos de braços cruzados. Porém, certamente desarmar diminui a mortandade por armas de fogo, como aconteceu na Austrália, com o número de mortos por tiro caindo em 50% desde 1996. E corta um importante canal de fornecimento de armas para a criminalidade: sendo 8 em cada 10 armas que estão com marginais aquelas que foram de cidadãos ordeiros um dia, como mostram os números de pesquisas em todo o país, desarmar a sociedade, reduzindo o número de armas em circulação, vai cortar uma das principais fontes dos criminosos. Além disso, 76 % das armas que cometem crimes são nacionais, sendo 63 % delas de fabricação da Taurus-Rossi, o que mostra, por sua vez, que as armas que fazem do Brasil recordista mundial de mortes por tiros não vêm, na sua maioria, de fora via contrabando.

Não acreditamos que desarmar a sociedade é panacéia. Por isso, é nossa responsabilidade continuar a luta e a pressão social por uma segurança pública mais efetiva e para a redução das causas da violência urbana. Se o SIM vencer em 23 de outubro estará sendo dado um passo importante. É nisso que acreditam ONGs, entidades dos movimentos sociais, igrejas, especialistas, vítimas, enfim, um mundo de gente, que não é nenhum pouco idiota.

Acreditamos que a pergunta subjacente ao Referendo de 23 de outubro é: que opção você faz para tentar construir uma sociedade pacífica: uma que depende das armas, como propõe o NÃO, ou uma que abre mão delas? Será possível acreditar que uma sociedade pacífica se faz com mais armas?