28.3.03

Enquanto eu escrevo, ali na rua está ocorrendo uma manifestação contra o Latrocínio de Bush.
Parece que todo o clima do mundo dos anos 60, sobre o qual eu muito li, está de volta. Anti-imperialismo/anti-americanismo, mobilizações mundiais contra uma guerra estúpida dos americanos, manifestações culturais e produção intelectual utópica. Parece que tudo isto está de volta ao mundo do início do século XXI. Tudo catalisado por obra e graça de George W. Bush.

Mesmo que a vitória de Bush e Blair seja certa (ou não), o mundo do pós-guerra será outro. Imagino que os trabalhistas never more ganhem uma eleição na Inglaterra. Imagino que os primeiros-ministros de Austrália, Espanha, e outros, devam cair com seus gabinetes, por força da oposição popular.
Imagino que o sentimento anti-americano vai conseguir unir mais o mundo, contra os Estados Unidos. E os americanos vão ser forçados a se questionar, pela primeira vez de verdade, por que o mundo inteiro os odeia.
Algo pode mudar.

Bush: esta guerra lança "uma clara mensagem ao mundo"

17:05 28/03

Agência EFE

O presidente dos EUA, George W. Bush, afirmou hoje, sexta-feira, que esta guerra lança "uma clara mensagem ao mundo que não nos submeteremos, no futuro, a ditadores que pensam que podem ameaçar a paz sem conseqüências".

Bem, ele não poderia ser mais preciso... Só esqueceu que as palavras cortam muito mais quem as pronuncia.

27.3.03

Digamos que George W. Bush tenha ouvido um enviado de Deus, que lhe disse:

Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto filho George W., incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nome gloriosíssimo de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como também quaisquer outros infiéis. Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao Império, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, concedemos ao dito presidente George W. Bush a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum aos mesmos George Bush e seus sucessores *. Se alguém, individuo ou coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado.

(É o que se lê na bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, do papa Nicolau V. Nos termos em itálico, apareciam os nomes do infante D. Henrique e do rei português D. Afonso. Mas a bula tem tudo a ver com o momento atual. A citação é de Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro)

Tive uma amostra do que o meu texto sobre o Marxismo x Cristianismo pode provocar ao ser publicado. Durante a correção do jornal, hoje, entrei em atrito com o pastor que o estava corrigindo.
Ele foi incapaz de entender o sentido do conceito de utopia que uso no texto, irritou-se com minha negação da teologia dos galardões, disse que eu confundia diaconia e salvação, e concluiu, com chave de ouro, afirmando que Jesus não olha para as pessoas segundo suas classes sociais.
Além disso, questionou Löwy porque ele disse que para Marx e Engels o comunismo incluiria a igualdade entre os gêneros. Assim, eu não sei de nada, mas não me arriscaria a questionar a interpretação marxista de um PhD em Marx sem estar muito bem fundamentado.
Estou esperando a repercussão na semana que vem...

Sobre o fato de Jesus olhar de maneira diferenciada para as classes sociais, que ele acusou ser invenção de Boff e da Teologia da Libertação, para mim é ponto pacifico. Deus, em toda a Bíblia, tem uma opção preferencial pelos pobres. E aqui se trata de uma opção histórica: o rico não precisa de defensor na história.
Diversos textos se referem a isso, especialmente o evangelho de Lucas, muitos Salmos, e mesmo a teologia do Êxodo de Israel: ali, Deus ouve e vê o clamor de um povo oprimido e desce para libertá-lo e por fim ao poder do opressor.
Mas essa é uma questão já bem discutida nesse blog...

Eu acho que deve ser óbvio que eu tenha minhas reservas ideológicas e, especialmente, teológicas/religiosas com Paulo Coelho. Mas o texto a seguir é perfeito. O tal texto foi republicado em diversos lugares, traduzido em diversas línguas. E segundo se diz, poucos textos contra a guerra repercutiram tanto:

Obrigado, grande líder George W. Bush.

Obrigado por mostrar a todos o perigo que Sadam Hussein representa. Talvez muito de nós tivéssemos esquecido que ele utilizou armas químicas contra seu povo, contra os curdos, contra os iranianos. Hussein é um ditador sanguinário, uma das mais claras expressões do mal no dia de hoje.

Entretanto, esta não é a única razão pela qual estou lhe agradecendo. Nos dois primeiros meses do ano de 2003, o sr. foi capaz de mostrar muitas coisas importantes ao mundo, e por isso merece minha gratidão.

Assim, recordando um poema que aprendi na infância, quero lhe dizer obrigado.

Obrigado por mostrar a todos que o povo turco e seu Parlamento, não estão à venda, nem por 26 bilhões de dólares.

Obrigado por revelar ao mundo o gigantesco abismo que existe entre a decisão dos governantes e os desejos do povo. Por deixar claro que tanto Jose Maria Aznar como Tony Blair não dão a mínima importância, e não têm nenhum respeito pelos votos que receberam. Aznar é capaz de ignorar que 90% dos espanhóis estão contra a guerra, e Blair não se importa com a maior manifestação pública na Inglaterra nestes 30 anos mais recentes.

Obrigado porque sua perseverança forçou Tony Blair a ir ao Parlamento inglês com um dossiê falsificado, escrito por um estudante há dez anos e apresentar isso como "provas contundentes recolhidas pelo serviço secreto britânico".

Obrigado por enviar Colin Powell ao Conselho de Segurança da ONU com provas e fotos, permitindo que, uma semana mais tarde, as mesmas fossem publicamente contestadas por Hans Blix, o inspetor responsável pelo desarmamento do Iraque.

Obrigado porque sua posição fez com que o ministro de Relações Exteriores da França, sr. Dominique de Villepin, em seu discurso contra a guerra, tivesse a honra de ser aplaudido no plenário – honra esta que, pelo que eu saiba, só tinha acontecido uma vez na história da ONU, por ocasião de um discurso de Nelson Mandela.

Obrigado porque, graças aos seus esforços pela guerra, pela primeira vez as nações árabes – geralmente divididas – foram unânimes em condenar uma invasão, durante o encontro no Cairo, na última semana de fevereiro.

Obrigado porque, graças à sua retórica afirmando que "a ONU tem uma chance de mostrar sua relevância", mesmo os países mais relutantes terminaram tomando uma posição contra um ataque ao Iraque.

Obrigado por sua política exterior ter feito o ministro de Relações Exteriores da Inglaterra, Jack Straw, declarar em pleno século XXI que "uma guerra pode ter justificativas morais" – e, ao declarar isso, perder toda a sua credibilidade.

Obrigado por tentar dividir uma Europa que luta pela sua unificação; isso foi um alerta que não será ignorado.

Obrigado por ter conseguido o que poucos conseguiram neste século: unir milhões de pessoas, em todos os continentes, lutando pela mesma idéia – embora esta idéia seja oposta à sua.

Obrigado por nos fazer de novo sentir que, mesmo que nossas palavras não sejam ouvidas, elas pelo menos são pronunciadas – e isso nos dará mais força no futuro.

Obrigado por nos ignorar, por marginalizar todos aqueles que tomaram uma atitude contra sua decisão, pois é dos excluídos o futuro da Terra.

Obrigado porque, sem o senhor, não teríamos conhecido nossa capacidade de mobilização. Talvez ela não sirva para nada no presente, mas seguramente será útil mais adiante.

Agora que os tambores da guerra parecem soar de maneira irreversível, quero fazer minhas as palavras de um antigo rei europeu para um invasor: "que sua manhã seja linda, que o sol brilhe nas armaduras de seus soldados – porque durante a tarde eu o derrotarei".

Obrigado por permitir a todos nós, um exército de anônimos que passeiam pelas ruas tentando parar um processo já em marcha, tomemos conhecimento do que é a sensação de impotência, aprendamos a lidar com ela, e transformá-la.

Portanto, aproveite sua manhã e o que ela ainda pode trazer de glória.

Obrigado porque não nos escutaste e não nos levaste a sério. Pois saiba que nós o escutamos e não esqueceremos suas palavras.

Obrigado, grande líder George W. Bush.

Muito obrigado.



26.3.03

Fui a um café da manhã nesta manhã. Conduzido pelo meu estimado chefe. O café, na verdade, era o lançamento, entre os pastores, da candidatura à prefeitura de Natal de um publicitário evangélico.

Indignei-me com os discursos.
Alguém estava pregando quando chegamos, usando a Bíblia para ilegitimamente legitimar a necessidade de termos governantes evangélicos. Os nossos pastores não se preocupam muito em disfarçar os reais interesses que fundamentam seus envolvimentos políticos não. Mas não penso que esse seja um espaço suficiente para tratar do assunto.

(Basta dizer que os textos usados são vetero-testamentários: Israel era uma teocracia, fundada no javismo. Inclusive, a intolerância religiosa é algo que salta aos olhos na Torah. Obviamente, os reis deveriam partilhar da fé javista. Mas note: eram reis em uma teocracia. A transplantação das noções para os nossos regimes democráticos ocidentais é completamente ilegítima).

Esse pregador dizia que os evangélicos sempre foram usados como massa de manobra por políticos hipócritas. Agora, nesse momento, deveríamos nos mobilizar para elegermos nossos representantes (note: dos evangélicos, reafirmando a prática política coorporativista que ele, em outro ponto, condenava).

Para completar o raciocínio, todos que usaram a palavra reafirmaram a necessidade de os pastores pedirem votos para os candidatos crentes, principalmente o tal publicitário. A mensagem para mim era clara: Estamos perdendo tempo. Nosso povo está se politizando e a gente está perdendo terreno. Vamos manobrá-los agora para que cumpram nossos objetivos políticos.

Fiquei enojado. E cresceu em mim a convicção e certeza de que em algum momento, em algum tempo, meu envolvimento político vai passar do que escrevo para a prática. E prometo exercer esse papel de uma maneira diferente dessa que condeno. Um dia, talvez...

O Latrocínio de Bush está perturbando-me profundamente. Creio que isso se deva ao fato de que minha geração nunca tenha acompanhado uma guerra de verdade. Mamãe definiu ontem o futuro da geração Latrocínio: vai desenvolver as mesmas neuras sociais e pessoais da geração Vietnam. O futuro é sombrio. Que olhe por nós o Deus das Revoluções!

Esta matéria é explosiva.

25.3.03

Segundo o Nedstatbasic, recebi a visita de um Comitê Gestor da Internet, Brasil.

A seguir, algo do que disse a ela em nosso Colóquio:

Professora Maluquinha, você sabe que não precisa e nem pode se prender aos limites das lições pré-programadas que vocês vão ministrar. Aliás, sempre que trabalhei com aulas pré-escritas na igreja, me sai melhor quando as usei somente como roteiro. Você tem liberdade para ir mais fundo.

Quer ver um exemplo. Plano de Deus é o tema da aula. Você sabia que os judeus sempre distorceram a sua eleição achando que o plano de Deus na vida da nação os tornaria indestrutíveis, inatacáveis? Que isso lhes faz pensar ainda hoje que têm todo o direito de espoliar e destruir a nação palestina?

Você sabia que os puritanos do May flower chegaram à América com a mesma ideologia na cabeça? Que ela se chama Destino Manifesto? Os americanos acreditam que o plano de Deus para a vida deles é que eles são a polícia do mundo, com direito e dever de interferir em todo o planeta. Bush tem achado que o plano de Deus para a sua vida é manter a hegemonia yankee a todo o custo. Afinal, o povo de Deus dos nossos tempos são os norte-americanos.

Percebe que você pode ser revolucionária mesmo em uma aulinha tão básica como essa?

O plano de Deus indica minha reconciliação com Ele. Mas a minha reconciliação com Ele implica minha reconciliação com o outro. O ministério da reconciliação leva o homem a se reconciliar com Deus, mas também leva a humanidade à reconciliação uns com os outros. Não é possível reconciliação com Deus sem reconciliação com o homem.

O plano de Deus indica salvação. Mas salvação também para a humanidade. E salvação não é só aquela promovida pela evangelização pé-na-cova, que se preocupa somente com o porvir. De que adianta um pobre se converter e não ter o que comer em casa?

O plano de Deus indica compromisso com o Seu Reino e a Sua Justiça. O que significa lutar por isso no mundo contemporâneo? É só lutar por um louvor melhor orquestrado na igreja? O que o jovem cristão pode fazer de concreto na luta pelo Reino e Justiça de Deus?

Você conhece o plano de Deus para a sua vida? Lembre que somos chamados para servir: Sê tua uma bênção, disse Deus a Abrão (Gn. 12. 1-4).

E aí meu amor, Professora Maluquinha? É necessário estar preso aos limites do fundamentalismo ideológico do PV?

Te amo.


Recebi um e-mail muito importante para mim. Meu primo, Fábio Lemos, a quem não tenho o prazer de conhecer, comentando os textos que tenho postado neste blog.
Realmente, fiquei bem feliz e emocionado com os comentários bondosos que ele fez.
Gostaria de transcrever um trecho do que ele fala:
Tb sou evangélico, da denominação Batista e hj sou Presidente da Jubarn, Juventude Batista do RN, onde enfrento muitas dificuldades por pensar de maneira diferente. Os “monarcas” do cristianismo de resultados, são a escória de um evangelho podre, elitista e direitoso, q busca somente promover os “escolhidos”, em sua maioria incompetentes, e despreza os leigos, q são os verdadeiros baluartes do Evangelho de Cristo, pois foi para estes q Ele veio!
Palavras dele. Eu endosso.
A satisfação foi inteiramente minha.

Outros dois momentos bons na tevê no domingo. O primeiro deles conduzido por ninguém menos que Tiririca. Eu estava assistindo sua participação no Domingo Legal. Ele falava sobre a Guerra, pedindo paz. Gugu lhe disse que Saddam era ruim para seu povo, morava em palácios de ouro enquanto a população passava fome. Aí, o cearense tirou Gugu do sério, visivelmente:
Por que você não dá metade do que você tem para os pobres? Encurralou o palhaço. Foi impagável ver a cara de raiva que o apresentador fez na hora.

O outro momento foi uma ausência. Eminem recebeu o Oscar por melhor música, mas nem foi apresentá-la, quanto mais receber a estatueta. O que será um rapper, branco, falaria do palco do Oscar?

Vou copiar agora Adaílton Persegonha, listando os livros que eu li ou terminei de ler neste ano. Ao lado, uma nota que vai definir minha opinião sobre a obra:
Cultura e Política, Roberto Schwrarz, 6,5
Igreja – porque me importar?, Philip Yancey, 3
Um pastor segundo o coração de Deus, Eugene Peterson, 8,5
O pastor contemplativo, Eugene Peterson, 9,5
A farsa da boa preguiça, Ariano Suassuna, 10
Deus é inocente; a imprensa, não, Carlos Dorneles. 9
Lutero e libertação, Walter Altmann, 8
De dentro do furacão, Richard Shaull, 8,5
Ideologias e ciência social, Michael Löwy, 9
O neoliberalismo, José Comblin, 9,5
O desespero humano, Sören Kiekergaard, 10
Eu disse adeus ao namoro, Joshua Harris, 2
A língua de Eulália, Marcos Bagno, 9
Projeto de ética mundial, Hans Küng, 9
A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação, Richard Shaull, 9,5

As minhas notas dizem mais respeito ao meu campo de interesse (o quanto o texto se aproxima da temática que eu aprecio ler) do que à qualidade própria da obra. À exceção dos dois de notas mais baixas...

24.3.03

Para ela:

Talvez seja real
Geraldo Azevedo/Fausto Nilo


Parte de mim que faltava
Tanto eu esperava
Te ver
Olhando o tempo
Eu e você
O impossível
Vamos viver
Ilusão
Eu duvido
Talvez seja real
Chegou
Por quanto tempo
Amanheceu
O impossível
Não é pecado
Tire os olhos da parede
Abra as janelas do quarto
Como a laranja e a sede
A gente ainda quer se encontrar
Como a laranja e a sede
Abra as janelas do quarto
Tire os olhos da parede
E essa parte de mim separada
Talvez seja real
Chegou
Por quanto tempo
Amanheceu

Melhores momentos da festa do Oscar: os botons contra a Guerra na lapela de muitos e o discurso de Michael Moore.

O Pentágono acusou: expor prisioneiros de guerra à tevê constitui violação da Convenção de Genebra. Porque o Iraque mostrou soldados americanos capturados. Mas esqueceram disso nos dias anteriores, quando as tevês de todo o mundo mostraram incansavelmente os iraquianos rendidos. E mais uma vez no fim da noite a tevê voltou a mostrar os iraquianos presos...

Outra sobre os iraquianos presos. Sexta-feira os ianques diziam que, de uma vez só, oito mil soldados haviam se rendido em Basra. Sábado, afirmaram que o total de iraquianos presos era dois mil. Hoje, já ouvi que os oito mil se entregaram de novo em Basra. Mas o total de presos é de três mil...

Mais uma contradição. No sábado disseram que Nashiria era uma cidade controlada pelas tropas aliadas. Ontem a Al Jazeera mostrou carros de guerra destruídos e homens americanos capturados na cidade que estava controlada...

O texto a seguir já foi postado anteriormente. Porém, eu o reescrevi a fim de publicá-lo na coluna teológica do Jornal em que trabalho no próximo sábado

É ampla, especialmente em ambiente protestante, a crença na incompatibilidade entre marxismo e cristianismo. Ainda que possamos ser acusados de anacronismo, já que o mundo comunista desabou com o Muro de Berlim no fim dos anos 80, entendemos ser interessante a discussão, desde que o fundamento utópico e analítico de Marx parece-nos ganhar em importância cada dia.
A afirmação de tal incompatibilidade se firma basicamente na questão ateísta do marxismo, a partir de sua crítica religiosa. No entanto, os mesmos que costumam se fechar, por isso, a qualquer diálogo cristão-marxista, não são tão radicais em relação a outros tipos possíveis de diálogo, como os que permeiam os acordos políticos entre igrejas e partidos. A questão é mais profunda e ideológica.
Efetivamente, o horizonte utópico do marxismo e cristianismo tem muito mais em comum que o fundamentalismo religioso nos permite perceber. Isto possibilitaria ricos diálogos, cada parte respeitando a outra.
Segundo Michael Löwy, o comunismo para Marx e Engels seria uma sociedade sem classes, igualitária, harmoniosa, na qual homem e mulher seriam iguais. E nos parece ser esse o ensino bíblico sobre o Reino de Deus.
Transparece, forçosamente, na leitura da Bíblia, o comprometimento de Deus com a causa do pobre e do explorado. Daí, Ronald Sider questionar: Deus, um marxista? ou se está Deus engajado em uma luta de classes?.
A essas questões parece responder Richard Shaull:
O Deus que derruba velhas estruturas, a fim de criar condições para uma existência mais humana, está, ele mesmo, no meio da luta.
O mesmo Shaull, em outro ponto, testemunha que em certo momento de seu ministério no Brasil descobriu essas possibilidades de diálogo:
Uma vez esclarecido que uma sociedade mais humana e mais justa exigia mudanças de sistema; uma vez compreendida a dimensão da mudança e a luta para atingi-la, descobrimos também que os marxistas eram, em geral, os que mais partilhavam dessa visão, tinham as mesmas preocupações com os pobres e a mesma ansiedade de justiça que nós, cristãos, tínhamos.
A partir daí, foi capaz de defender aliança histórica ao marxismo em determinado momento, sem nos tornamos marxistas.
Tomando o sentido de utopia como sendo uma visão de mundo crítica quanto à ordem estabelecida, percebemos similaridades utópicas entre cristianismo e marxismo.
Assim, é possível antever o contexto e as motivações que desenvolvem a teologia dos galardões, muito (mas muito mesmo) comum em ambientes evangélicos.
Essa teologia afirma que no Reino consumado as pessoas estarão mais perto de Jesus na medida de suas obras na terra em prol da vontade de Deus. Essa retribuição também é entendida como jóias (bênçãos) que os crentes vão receber em sua coroa na glória.
De qualquer maneira, tal concepção torna inexistente uma possível sociedade sem classes. Mesmo no céu, a sociedade de classes do nosso mundo será reproduzida, havendo uma elite espiritual (rica de jóias em suas coroas) e um proletariado, que por muito pouco escapou da perdição (pelo fogo).
E como em geral os adeptos dessa teologia entendem as boas ações que merecem galardão na medida do dinheiro que o crente investe “na obra”, essa elite continua sendo a mesma elite capitalista, mundana, que controla as igrejas hoje.
Não é de se estranhar que essa ideológica concepção teológica tivesse nascido nos EUA e tenha ganhado força, ocupando o espaço de diversos movimentos críticos, utópicos, libertacionistas, sempre entendidos como heréticos.
No entanto, inúmeros exemplos em Jesus demonstrariam que o Reino dos Céus constitui-se de uma sociedade sem classes. Mas gostaríamos de citar uma parábola que encerra, com clareza, a questão dos galardões. Aliás, ela foi dita por Jesus justamente para responder a essa questão.
O texto é Mateus 20. Lá Jesus conta a parábola sobre um dono de terras que sai diversas vezes em um dia para contratar trabalhadores, combinando com eles o salário de um denário.
Na hora do pagamento, aqueles que trabalharam apenas uma hora recebem primeiro. Em seguida, quando os que passaram o dia todo trabalhando vão receber, chateiam-se por terem recebido a mesma quantia (esperavam receber mais, pois fizeram mais).
Mas o empregador lhes lembra o salário combinado e que ele não pode ser chamado de injusto por querer pagar a todos a mesma quantia.
A parábola responde à questão dos galardões. Deus prometeu uma só coisa a todos os que crerem: salvação gratuita pela fé em Jesus. Não há plano de escalonamento, nem percentual de produtividade no céu. Todos receberão unicamente o que foi acertado.
Isso significa que, graças a Deus, o Reino de Deus continua sendo uma sociedade sem classes, igualitária, pela qual podemos começar a lutar aqui e agora. Ainda que isso signifique Revolução.