22.11.03

Tem dias em que a delicadeza e a sensibilidade falham. Dias em que bem que a gente gostaria de dizer algo útil, de parecer mais capaz e maduro do que se é, de ser um companheiro mais real... Dias em que até sentimos falta de nós mesmos, de quem somos quando conseguimos ajudar os que se aproximam de nós.

Fim de semana, às vezes, faz isso comigo. Acho que precisava ser mais útil, estar mais presente, ter mais o que dizer, ser mais amigo de todos. Mas, às vezes, as forças foram drenadas por uma semana exaustiva.

É isso: hoje me sinto exaurido.

Exaurido especialmente por duas indignações e incapacidades minhas.

A primeira delas se refere às promessas de companheirismo eterno que se foram com a minha indelicadeza e com os medos irracionais dos à minha volta. Indignei-me e me senti incapaz de me trazer e aos companheiros de volta à razão.

A outra é pelo grito constante em meu peito contra as injustiças do mundo, contra as quais me sinto incapaz de lutar sozinho. Por que um semelhante a mim não teve as mesmas oportunidades que eu?

Além de tudo que a gente vê diariamente nas ruas das cidades, uma matéria do Jornal da Noite, na Band, chamou minha atenção quando mostrou moradores de ruas em São Paulo. Um dos muitos mendigos mostrados na reportagem cursou até o terceiro ano de Direito, tendo passado em 20º lugar no vestibular. Até que ficou desempregado e se tornou catador de lixo. Sonhando com o dia em que poderá terminar seu curso e trabalhar com direito civil e penal. Quem lhe dará esta oportunidade?

Um outro senhor, ex-jogador do Botafogo de Garrincha e Carlos Alberto, com formação superior em ciências contábeis, perdeu tudo na bebida. Que outra chance ele terá?

Isso me fez pensar em uma discussão que tive com meu primo certa vez. Ele comprou o discurso neoliberal por inteiro e defendia a tese de que os competentes se estabelecem no mercado. Quer dizer, para esse discurso as vítimas do excludente processo neoliberal de redução no oferecimento de vagas de emprego - a chamada crise de empregabilidade - são vítimas de sua própria incompetência.

Isso me indigna: alguém que acredita nesse artifício ideológico. Indigna-me também uma situação em que a falta oportunidade empurra tanta gente para fora da sociedade, da cidade, enfim, da vida.

Indigna-me as tantas vezes em que não me sinto mais eu. Como nesse fim de semana.

Emília me enviou esse texto, creditado a Arnaldo Jabor:

Amores mal resolvidos

Olhe para um lugar onde tenha muita gente: uma praia num domingo de 40º, uma estação de metrô, a rua principal do centro da cidade.

Metade deste povaréu sofre de Dor de Cotovelo.

Alguns trazem dores recentes, outros trazem uma dor de estimação, mas o certo é que grande parte desses rostos anônimos tem um Amor Mal resolvido, uma paixão que não se evaporou completamente, mesmo que já estejam em outra relação.

Por que isso acontece? Tenho uma teoria, ainda que eu seja tudo, menos teórico no assunto.

Acho que as pessoas não gastam seu amor. Isso mesmo. Os amores que ficam nos assombrando não foram amores consumidos até o fim.

Você sabe, o amor acaba. É mentira dizer que Não. Uns acabam cedo, outros levam 10 ou 20 anos para terminar, talvez até mais.

Mas um dia acaba e se transforma em outra coisa: lembranças, amizade,parceria, parentesco, e essa transição não é dolorida se o amor for devorado até o fim.

Dor de Cotovelo é quando o amor é interrompido antes que se esgote. O amor tem que ser vivenciado.

Platonismo funciona em novela, mas na vida real demanda muita energia sem falar do tempo que ninguém tem para esperar. E tem que ser vivido em sua totalidade. É preciso passar por todas etapas: atração-paixão-amor-convivência-amizade-tédio-fim.

Como já foi dito, este trajeto do amor pode ser percorrido em algumas semanas ou durar muitos anos, mas é importante que
transcorra de ponta a ponta, senão sobra lugar para fantasias, idealizações, enfim, tudo aquilo que nos empaca a vida e nos impede de estarmos abertos para novos amores.

Se o amor foi interrompido sem ter atingido o fundo do pote, ficamos imaginando as múltiplas possibilidades de continuidade, tudo o que a gente poderia ter dito e não disse, feito e não fez.

Gaste seu amor. Usufrua-o até o fim. Enfrente os bons e maus momentos, passe por tudo que tiver que passar, não se economize. Sinta todos os sabores que o amor tem, desde o adocicado do início até o amargo do fim, mas não saia da história na metade.

Amores precisam dar a volta ao redor de si mesmo, fechando o próprio ciclo.

Isso é que libera a gente para Ser Feliz Novamente.

Foi feriado ontem em Natal. E amanhã o Jornal União, finalmente, estará sendo relançado. Espero que ele agrade.

20.11.03

As construções de nosso inconsciente se assemelham às concepções ideológicas mais cruas de nossa sociedade. Digo isso porque às vezes percebo tanta gente sendo conduzida pelas mentiras que o inconsciente constrói quanto as que são levadas como massa pela ideologia.
Por exemplo: queremos ajudar alguém, mas temos um medo inconsciente de sua proximidade. Não somos capazes de admitir que não o queremos por perto. Isso não é civilizado, não condiz com meu estado, feliz e saudável emocionalmente. A presença dele não deveria me afetar tanto. Mas, ainda que conscientemente eu não admita, afeta. Afeta muito. E eu temo muito. Aí, o inconsciente começa seu jogo ideológico.
Primeiro, ao me comprometer em realizar um favor, que o traria como conseqüência mais perto de mim, eu esqueço. Se você me torturar eu não poderei dizer outra coisa, se não que esqueci. Armadilhas ideológicas do inconsciente, acredito na minha mentira. Já que não é fácil admitir que prejudico a vida dele simplesmente porque não o quero por perto.
Depois, quando com muita luta e risco, conseguimos cumprir o favor, negamos um outro porque ... enfim, não sabemos porquê. Não temos a resposta. Envolvi-me tanto na mentira que, mesmo sem sentido, não sei o porquê.
Veja, crescer é assumir toda a verdadem, ainda que seja complicado admitir medos que nos fazem parecer menos maduros. É melhor esta liberdade do que ser conduzido pela ideologia do inconsciente.

Tenho experimentado algo como o impacto do desnível em que eu e os de casa vivemos. O peso de suas feridas emocionais não nos permite vivermos no mesmo horizonte de compreensão. Minhas novas concepções não os seduzem, não entendem o valor, o sentido e as possibilidades de se curarem. Os choques estão me incomodando porque me empurram para o mesmo patamar doentio. Talvez, como foi com Raquel, a saída seja suspender relacionamentos. Lamentavelmente.

Cena urbana, em Natal. Quatro da tarde, bairro do Alecrim. Maltrapilhos guardadores de carros tocando violão e cantando Imagine, de John Lennon.

19.11.03

Poderia responder de diversas maneiras a um de meus comentadores anônimos. Sei agora que ele/a é Raquel ou alguém ligado a ela. Resolvi responder reescrevendo um post que publiquei em 30 de outubro:

Hoje eu tive ainda mais certeza de que se lutarmos para resolver problemas insolúveis em nossos relacionamentos o máximo que conseguiremos será aumentar as feridas.
Algumas feridas abertas no passado ficaram lá. Precisamos deixá-las cicatrizar, mas nunca conseguiremos fazer algo para mudar o passado. Parece óbvio ou patético, mas muitas vezes aumentamos nossos problemas e nossas dores por lutarmos para mudar o passado.
O passado não se muda. Temos que conviver com ele. Podemos curar as nossas lembranças dele. Ele pode não doer mais. Mas ele não pode ser mudado.
Percebi que alguns dos problemas de meus piores relacionamentos dizem respeito a coisas imutáveis que ficaram para trás. Eu causei dores. Não posso apagar o que fiz. Se houver perdão real, a cicatriz vai ficar mas a mágoa passará. Mas os problemas se realimentam quando eu sou cobrado a desfazer o que já está feito. É impossível. Parece óbvio, mas é trágico.
Uma outra coisa. Cobram sinceridade, ao mesmo tempo que dizem que são incapazes de acreditar em mim. Isso é cômico. Se você não acredita em mim, não adianta eu ser o mais sincero dos homens. Você nunca me acreditará. Isso é cômico.
Por isso percebi que a irrito quando digo que estou bem. Irrito quem não consegue efetivamente me perdoar, quem está cobrando coisas impossíveis, as quais já posso superar e ela não.
Em nome da minha sanidade, percebo, lamentando, que é hora de se precaver, talvez até se afastar. Se não, será uma conversa de loucos, aumentando as feridas, aprofundando os abismos, em que estaremos rodando em torno dos mesmos pontos, incapazes de crescer. Quando for possível para ela superar o passado e entender que é impossível mudá-lo, talvez nossas conversas se tornem mais sadias.
Sabe o que é pior? É perceber que, ao menos na aparência, isso tudo contradiz o que venho expondo nos últimos dias. Acredito que é justamente o contrário. Quero relacionamentos reais, especialmente com alguém como Raquel, com quem tive um envolvimento tão doentio. Mas esse relacionamento não será real enquanto ela não conseguir contemplar e viver a realidade: as feridas do passado não podem ser desfeitas, mas podemos tratá-las para que se tornem apenas cicatrizes. Podemos superá-las. Somente assim será real.


Lamento muito que a parte de minha vida da qual você, Raquel, é participante importante tenha se tornado uma impossibilidade total de resolução e reconciliação. Até porque meu fóco principal de vida hoje é amor e relacionamento.
Sinto muito.

Um comentador anônimo também deixou algumas perguntas instigantes:
A comoção é diretamente proporcional à riqueza das vítimias simplesmente ou é resultado de sua aproximação com as pessoas comovidas? Comove-se pelo dinheiro ou pela proximidade? É mais fácil governar a cozinha ou o mundo inteiro? Não será verdade que este está contido naquele?

Monólogo abandonado
(Lúcia Irene Reali Lemos)



- Moço:

sou andarilho destes cantos da cidade.

Sou menino, sou menina, sou sem nome;

de nariz escorrendo e cabelo raspado.



Minhas fantasias de menino “seo” moço,

estão perdidas nas janelas, nas vitrines,

no luxo desta sociedade impiedosa.



Canto, choro, brigo, viro-latas, lavo carros,

durmo nos bancos destas praças espalhadas.

Sonho acordar num berço amigo

e das calçadas em que amanheço sou o dono.



Eu pergunto: - “ seo ” moço, onde estão os

malditos indiferentes

à esta minha miserável vida?





Procurei nas escolas - não pude entrar, descalço que estava.

Procurei nas igrejas - não fui aceito. Incrédulo me tornei.

Procurei, nos parques de diversões,

nos circos das pipocas e dos palhaços

o meu sorriso de criança que nunca tive.



E o que encontrei, moço?

No espelho, vi meu rosto magro, pálido, estampado

e o estômago ditando ordens implacáveis

que se tornavam ainda mais cruéis

porque não eram atendidas.



Ai, moço!

Que gosto amargo tenho desta vida

que já me fez

matar, roubar, cheirar cola, passar fome, sentir frio,

anoitecer e amanhecer solitário...



MOÇO:

NÃO TENHO ARGUMENTOS CONTRA A FOME
E O DESEMPREGO de meus pais


HOJE SOU MENOR ABANDONADO, DELINQUENTE.

AMANHÃ, TENHO CERTEZA,

SEREI O PESADELO DESTA SOCIEDADE

18.11.03

A pobreza não é causa dos males. Mas a nossa sociedade, como funciona, como lida com os menos favorecidos, acaba por colher o que planta.
Já se disse que um dia o morro vai descer para o asfalto. Aí a guerra civil, o conflito entre dominadores e sujeitados, vai se tornar mais clara.
A classe média (e a mídia nos reflete) usamos dois pesos e duas medidas e não nos preocupamos com as causas mais graves dos males que nos envolvem. Cegamo-nos para tudo até que matam nossos filhos. Então, a saída mais fácil é exterminar a senzala. Mas, se fazemos isso, a espiral se realimenta e o conflito se fortalece.
Eu somente gostaria que pensássemos mais no mundo que nos cerca e no papel que podemos desempenhar nele. Em busca de soluções que possam reescrever uma história de plena reconciliação.

Tem-se falado muito sobre o assassinato de Liana e Felipe em toda parte. Ontem Hebe falou um monte de barbaridades sobre o caso.
Acredito que a situação é grave, mas não temos visto ninguém pensar nas questões relevantes envolvidas no caso.
Por exemplo, apesar de parecer cruel dizer isso, esse caso somente se tornou primeira página da mídia porque envolveu a classe média paulista. A violência no país está a esse nível faz tempo, mas a classe média prefere sempre se esconder atrás das grades e muros de suas casas e se narcotizar com drogas diversas, desde as ilícitas até a tevê. Ela somente se desperta para o fato quando é tocada diretamente pela violência.
Hebe chamou de canalha o garoto que participou do assassinato. Disse que o mataria se pudesse. Ela não tem capacidade intelectual para entender a importância do veículo onde fala suas baboseiras. Ela não percebe como seria interessante se conduzisse suas discussões para questões relevantes, em vez de discutir a aplicação da pena de morte. Essa é uma discussão irrelevante porque no Brasil, a não ser que se escreva uma nova constituição, jamais haverá pena de morte oficial. Ainda que haja a que sociedade e Estado já promovem informalmente.
Mas acredito que ninguém tem se lembrado (e seria demais de minha parte exigir que Hebe o fizesse) de se perguntar que sociedade é essa a brasileira que gera um menino de 16 anos que se torna capaz de matar cruelmente dois outros adolescentes de mesma idade. Ninguém tem se preocupado em discutir que louca sociedade é essa que tem gerado tantas mazelas, que ainda se sente no direito de dizer que a violência que o adolescente cometeu é mais séria do que o violento processo que o empurra a essa situação.
Quem lhe deu educação? Quem lhe deu oportunidade? Quem lhe deu tratamento, se ele é claramente adoecido?
Por que Liana e Felipe são vítimas maiores que os meninos da Candelária? Por que sou obrigado a aceitar a perpetuação dessa mentalidade de senzala?
Acredito que somente conseguiremos mudar o quadro de nossa sociedade quando formos capazes de fazer as perguntas certas. Se nem disso temos sido capazes, como poderemos evitar novas tragédias?

17.11.03

Se você não assistiu e ainda pretende assistir Matrix Revolutions evite ler os posts abaixo.

Eu tenho duas possíveis interpretações para o terceiro filme. Quer dizer, duas possíveis respostas à pergunta: o que, afinal, Matrix quer dizer?
Nas duas o motor de tudo é o amor. E a solução de tudo também.
A primeira
O filme é redundante e reafirma o cristianismo. Enquanto no primeiro filme, o Messias morre e ressuscita para salvar os homens, o terceiro mostra mais uma missão do Cristo: a reconciliação, a paz. Ao ser crucificado e entregar a própria vida. Como Cristo, Neo compra a reconciliação e a paz entre homens e máquinas. Ele vai ao seu Gólgota e escolhe se dá pela paz. E parece conseguir.
A segunda
A solução de tudo é o amor, a reconciliação e a paz. O que pode preservar o homem no planeta é isso.
Mas acredito que o filme pretende dizer que é preciso mudarmos nossos paradigmas para conseguirmos isso.
Não é a modernidade, representada pelas máquinas e precisão racional do Arquiteto. A racionalidade moderna, auto-destrutiva como Smith, não é caminho seguro para a paz, segundo Matrix.
Mas, para o filme, o caminho também não é a religião tradicional representada pelo cristianismo.
Deus está morto. O beijo da morte de Persérfone alcançou a Trindade (Trinity). A Trindade morreu.
A afirmação de fé dos cristãos é relida na seqüência final. Quando o deus das máquinas, após afirmar que estava consumado, libera o corpo inerte de Neo, é o Crucificado que ele recolhe. Como uma Madona com o corpo morto do Filho.
Neo morreu para que a paz se fizesse. Mas ele não ressuscita. Ele continua morto ao fim do filme. Para Matrix não é a morte e a ressurreição do Messias que promove a paz. É a desconstrução e morte do cristianismo.
Esta é a mensagem de paz e amor: nem a racionalidade moderna nem o cristianismo. O caminho é um novo paradigma, um novo projeto de relacionamento e amor uns com os outros e com a vida e o mundo.

Retoma-se Nietzche, Marx. Deus está morto. O cristianismo precisa acabar em nome da paz.
Mensagem perigosa trazida à vida por alguém que não pôde encontrar-se com o Cristo que muda a história mas apenas com o Cristo construído por uma religião sufocantemente inumana.
Nada sabem sobre um Deus de amor e uma religião libertadora. Mas conhecem a história destrutiva das instituições eclesiásticas. Jamais tiveram um encontro com a Verdade, aquela que pode libertar e mudar o mundo: Jesus Cristo.

Revolutions se movimenta inteiramente no amor. Desde o casal de programas que se sacrificam pelo amor da filha Sati (sim, programas amam) até a seqüência final.

Em certo momento de Revolutions o Arquiteto garante sua palavra dizendo que não é homem. Pareceu-me referência a um texto bíblico que afirma que Deus não é homem para que minta. Afinal, o Arquiteto é o deus da Matrix.